quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Viagem ao Assentamento Pastorinhas (Jornal O Tempo)

Jornal: O TEMPO - 24/08/2007 –
Caderno: FIM DE SEMANA - MAGAZINE –
LEO NORONHA / CRÍTICO DE GASTRONOMIA

O convite foi prontamente atendido. Não é todo dia, afinal de contas, que se tem a oportunidade de sentar à mesa em um assentamento do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Suponho que a maioria dos leitores sequer cogite dessa possibilidade, por julgá-la indigesta ou, na melhor das hipóteses, gastronomicamente irrelevante. A verdade é que o preconceito ronda boa parte da classe média e da elite econômica, quando o assunto é MST. Sempre evidente e maldito na mídia ao promover ocupações, o MST é relegado, em grande parte, à invisibilidade, no que se refere aos seus resultados. Pouco se vê, lê ou escuta sobre as famílias que se beneficiam de sua organização, trabalhando, vivendo e comendo com dignidade ausente da periferia das metrópoles.
O MST, uma das mais estruturadas e socialmente eficazes organizações populares da história brasileira, é, exatamente por isso, das mais incômodas aos olhos complacentes do “projeto de dominação bem-sucedido” que é o Brasil, nas palavras do historiador Manolo Florentino.
O ponto de partida da pequena viagem é a Escola Balão Vermelho, cuja localização, o bairro Mangabeiras, em Belo Horizonte, faz supor o poder aquisitivo de boa parte da clientela de pais e alunos. Pois foram eles, ou parte minoritária deles, verdade seja dita, com o endosso de professores e diretores daquele estabelecimento de ensino, que buscaram o convívio e o compartilhamento de experiências e conhecimento com a pequena comunidade de Trabalhadores Rurais Sem Terra do Assentamento Pastorinhas, em Brumadinho, na região metropolitana. Vale, aqui, puxar a orelha do presidente da República: elite intelectual é conceito que vai muito além de elite econômica, pois neste país tem gente que vive sem conforto, mas ajuda a sacudir as estruturas sociais apodrecidas.
O comboio ruma para as bandas de Brumadinho. Meia dúzia de automóveis cheios de crianças e adolescentes, dançando sua música com o tal MP3 nos ouvidos. Quem quer que veja o bando, terá a impressão que o destino é o Museu de Arte Contemporânea de Inhotim, referência nacional ignorada por muitos belo-horizontinos, entre os quais me incluo.
Alguns pais acordam no horário da classe média, talvez mais cedo do que de costume, já que é feriado, oportunidade rara para curtir um pouquinho a cama, espichando a espreguiçada. Para o povo da roça, no entanto, a natureza tem sua cartilha, que pede almoço, em vez de desjejum, às dez e meia da manhã. Hora apropriada para tomar café é cinco da matina. Dá tempo de contemplar o arrebol detrás da fumaça do café. Quem madruga tem o sol como aliado e a noite como berço.
Imagino que os anfitriões tenham silenciado algum desconforto com a demora dos urbanos visitantes. Mulheres e crianças estavam a postos para dar as boas-vindas, abraçar, conversar e ganhar livrinho didáticos que a meninada de cá levou para a de lá. Bonito vê-los todos, sentadinhos, ávidos do mundo de fora. As páginas acarinhavam os dedos, na troca da textura da cenoura arrancada da horta pelo macio papel lisinho e brilhoso. O menino loiro, falante e decidido, mordia o lanche laranja caroteno, entre uma e outra historinha.
A caminhada pelas plantações de hortaliças, o roçado de milho de origem peruana, de feijão, arroz de sequeiro ensinou que índice de produtividade pode ser medido em sorriso, saúde, alegria e coesão social. Essas coisas que o agronegócio e os especialistas em commodities ignoram.
Na chegada ao refeitório de lona, fui eu que silenciei minhas lágrimas. Preferi vertê-las para dentro, de modo a regarem de esperança o canteiro da alma. O banquete a seguir tinha todas as cores, gostos e nutrientes de que se precisa para viver feliz. O molho de limão capeta e pepino picadinho com cheiro verde jamais será esquecido. O jeito de picar o repolho e a abobrinha também não. O feijão de sustança, amassado com estrelinha, mais o arroz soltinho, branco, um nada de gordura reviveram minha infância nas fazendas da parentada.
No Assentamento Pastorinhas, 22 famílias trabalham de forma coletiva. Produzem 22 tipos de hortaliças e frutas, tudo com adubação orgânica e agroecológica.
O Brasil precisa respeitar suas raízes.

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